sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Blade Runner - O Caçador de Andróides: Versão do Diretor


Blade Runner pode entrar no exemplo que um filme pode ser ao mesmo tempo clássico e cinema artístico. Utilizo essas duas expressões da mesma forma que João Batista de Brito em seu texto “Dois Modelos de Cinema”, o filme de Ridley Scott passou por diversas versões, a primeira nos moldes Hollywoodianos, as demais buscavam a essência artística que o diretor queria imprimir em sua obra em 1982. O resultado desta versão do diretor será analisado aqui nos parágrafos seguintes.


A história se passa no ano de 2019, a tecnologia avançou, capacitando os seres humanos a viagens interplanetárias. Essas viagens ainda são perigosas, ocasionando no surgimento dos replicantes, seres criados geneticamente para parecerem humanos. Contudo, a revolta violenta dos replicantes provocou o surgimento da lei onde nenhum replicante pode pisar no planeta Terra, o descumprimento dessa lei acarreta seu extermínio. Rick Deckard (Harrison Ford) é um Caçador de Andróides, encarregado de procurar e matar essas réplicas humanas. Seus serviços são requisitados quando um grupo de replicantes avançados chega a terra e ameaçam a vida dos seus criadores.


O filme é baseado no livro de ficção científica de 1968: “Do Androides Dream of eletric sheep?” de Philip K. Dick. A história do filme envolve as questões de identidade, existência individual. A versão do diretor omite a narração over de Deckard, desenvolve o romance entre Deckard e Rachael (Sean Young) e altera o final. Com essas mudanças Ridley Scott torna o filme mais contemplativo, além de adicionar o alardeado mistério que envolve a verdadeira identidade do protagonista, seria ele um replicante?



Mas antes de abordar a questão Deckard, é interessante definir a diferença entre cinema clássico e artístico. Segundo Brito, o cinema clássico americano seria “comunicável, previsível e fechado” enquanto que o artístico seria o contrário. A primeira versão de Blade Runner foi submetida aos desejos dos produtores em transformá-la em uma leitura mais fácil para o público, acrescentando a voz over de Harrison Ford para explicar a trama e modificaram o final para um desfecho feliz. Com as modificações produzidas pelo diretor, há diversos momentos para reflexão do público para o que está sendo mostrado. Seu final aberto dá a chance ao espectador suas próprias interpretações quanto a identidade de Deckard. O filme também possui características de um neo-noir e apesar da retirada da voz over, permanece com os conceitos deste estilo.


Para esclarecer, o estilo neo-noir nada mais é do que uma modernização dos filmes noir da década de 40 e 50. No caso de Blade Runner há uma hiper-modernização, mesclando o noir com ficção científica. A trama cerca uma história de detetive, a locação é a Los Angeles futurista, personagens arquétipos como a femme-fatales (neste caso belas replicantes assassinas, que de uma bonequinha linda transforma-se numa bruxa acrobática mortal) e detetive durão solitário (característica do personagem de Harrison Ford). Além disso, a ambigüidade moral da trama, questão vista nos filmes noir, com os replicantes sendo utilizados como escravos sem ter o direito de aproveitar a vida de forma duradoura. Esta problemática é resolvida pelo personagem Gaff (Edward James Olmos) quando comenta sobre a morte iminente de Rachael ele resume a uma pergunta “Quem vive?” essa é a resposta depressiva do filme aos replicantes, para quê lutar para não morrer se ninguém é eterno?


A análise do conteúdo do filme se sobrepõe a estética do mesmo. Contudo, cabe abrir um espaço para o trabalho de Ridley Scott. A seqüência inicial demonstra uma estética musical da cidade, com a trilha sonora de Vangelis mesclando-se com a trilha sonora da cidade, com seus carros espaciais e explosões de fogo das torres. O filme é composto por um jazz modernizado, o que absorve ainda mais o estilo dos filmes noir, principalmente dos encontros amorosos do protagonista com seu interesse romântico. A luz possui características interessantes, em ambientes externos impera a luz de neon, enquanto que nos internos a maioria das cenas são compostas por um forte foco de luz advindo das janelas. A cor azul proveniente dessas luzes provoca tanto a sensação de melancolia deste futuro em particular quanto a sensação de artificialismo dos replicantes.


Ridley Scott insere planos relâmpagos (ou como os roteiristas chamam “insert”) em uma cena em particular. Estes inserts caracterizam-se também por flashfowards, é a cena anterior ao encontro dos replicantes com o cientista dos olhos, na cena o personagem de Rutger Hauer comenta sobre o “tempo” e nesse momento insere-se a cena em close da mão do replicante Roy e depois do close no rosto suado de Roy com uma estranha mão no ombro. As duas cenas aparecem mais à frente, a primeira no combate final entre Deckard e Roy e a segunda quando Roy encontra Tyrell. Estes planos relâmpagos podem deixar os desatentos confusos, procurando o dono da mão no ombro de Roy, esta incomunicabilidade é uma das características descritas por Brito sobre o cinema artístico.



O diretor erra na seqüência de perseguição da replicante, com o uso errado de planos podemos perceber nitidamente que é uma dublê ao atravessar as vitrines das lojas. Contudo, em 2007, Ridley Scott produz mais uma versão de Blade Runner, agora, inserindo digitalmente o rosto da atriz nesta seqüência em particular, tentando assim apagar os erros do passado.


O trabalho dos atores nesta produção não atrapalha seu desenvolvimento. Harrison Ford encarna o detetive renegado sem passado, Sean Young com sua interpretação robotizada ironiza a necessidade do teste para mostrá-la como replicante, Rutger Hauer impregna carisma ao replicante líder Roy. Um destaque que eu acrescento é para a atuação de Edward James Olmos para o personagem Gaff, o que seria ele? Um andróide? Um homem com várias partes cibernéticas? Seu apreço por origamis é uma das chaves para a revelação da identidade replicante de Deckard. A medida que o filme chega ao fim, as atuações dos replicantes ficam cada vez mais bizarras, talvez uma analogia ao mal-funcionamento de uma máquina quando esta chega aos seus últimos dias.


Por fim, antes de encerrarmos esta análise, cabe um parágrafo ao mistério e pistas sobre a identidade replicante de Deckard. Vamos começar pelos menos óbvios, os olhos de quase todos os replicantes do filme adquirem um tom dourado em pelo menos uma cena (com exceção dos dois não principais), nenhum humano possui essa característica, na cena após Rachael salvar a vida de Deckard o detetive apresenta essa coloração e para provar que isso não é uma mera coincidência, os olhos da coruja geneticamente criada também brilham em um close na casa de Tyrell. A casa de Deckard não apresenta nenhum detalhe de sua vida passada, o personagem possui fotos antigas demais para definir que são realmente dele. Na batalha final, porque Roy salvaria a vida de Deckard? E porque ele questiona sobre “viver com medo”, se Deckard soubesse de seu prazo de validade não teria medo da morte? Mas é Gaff que introduz as principais pistas, a primeira é uma frase ambígua dita na cobertura do prédio “Fez um trabalho digno de um homem” e a outra pista é a mais significativa, a característica principal dos novos replicantes são as implantações de memórias, ao final Deckard encontra em sua porta um origami de unicórnio, como Gaff saberia de um sonho que o detetive não contara a ninguém?


Como podem ver Blade Runner – O Caçador de Andróides: Versão do Diretor tem sua força principal em seu conteúdo, na história e implicações existenciais que ela invoca. Além da própria sub-trama oferecida ao espectador sobre o mistério de Deckard. Ridley Scott destaca-se na condução do filme e na escolha de tornar o longa-metragem em um filme artístico. Apesar da visão desiludida que o filme tem do mundo, diferente dos seus replicantes, Blade Runner perdura até hoje.



Nota: 8



Rafael Sanzio